sábado, 7 de novembro de 2015

A vida em retratos: o fenômeno secular dos selfies

O mundo pós-moderno valoriza o individualismo como expressão imperativa da vida social. Dessa forma, a expressão do 'eu' ocupa o lugar progressivamente de debates que envolvam questões sociais e de comunidade. A exteriorização do 'eu' é o cerne das relações interpessoais e ao mesmo tempo contrário a elas, visto que o egoísmo e o narcisismo não debatem, mas dialogam verticalmente. Ou seja, o indivíduo não espera algum tipo de discussão aprofundada acerca do seu 'eu compartilhado', ele espera simplesmente nutrientes que continuem a alimentar seu ego narcísico - os elogios. Em consequência, tem-se um loop infinito no qual o 'eu' real rende-se ao 'eu compartilhado' para satisfazer sua mediocridade e superficialidade crítica, para satisfazer a falta de Ser, enfim, para auto promover-se em um mundo que valoriza holofotes e efeitos mais do que o espetáculo da vida real.

O fenômeno dos selfies não é algo próprio dos últimos anos. A denominação sim, mas não o fenômeno. Tal fenômeno nasce quando os modelos ecônomicos deixam de ser meramente métodos restritos à esfera quantitativa de organização das contas públicas e passam a ser um estilo de vida no qual rege, não somente a vida social, como as relações entre pessoas. Dessa forma, pode-se visualizar, especialmente a partir do capitalismo financeiro e, recente, da emergência do neoliberalismo, que as relações de compra e venda não são somente de bens materiais, mas de afetos - como afirma o pensador contemporâneo, Vladimir Safatle. O 'eu' vende uma representação de si - o ‘eu compartilhado’ - em troca de emprego, de aumento salarial, de fama. Dessa forma, "investir" deixa de ser um vocábulo e uma ação  circular à economia e passa também a gerir a vida individual. Investe-se na bolsa de valores e investe-se em romances. Investe-se, não na educação, mas na capacidade do 'eu potencial’ aprender. Como todo investimento procura resultados, lucro, beneses, algo superior a situação antecedente; no investimento em si próprio, isso não muda. Inconsciente e conscientemente, o 'eu' pós-moderno promove-se a todo o tempo procurando no outro a legitimação dessa promoção. Assim, o selfie propriamente dito, a foto de si mesmo, é o fenômeno concreto do que já ocorre desde o final século XIX. Esse retrato de si é, na verdade, retrato de um investimento. Investimento este em que o 'eu potencial’ deseja Ser em um mundo que Ser pouco importa comparado a aparecer. Aparecer importa mais porque é a essência do modelo de vida vigente - é necessário criar e reinventar constantemente formas rentáveis de ser feliz: como o novo carro, a novo celular etc, de modo que é fundamental o que o ‘eu’ mostra Ter. De modo que sempre os objetos essenciais da venda sejam a possibilidade de ser celebridade e o individualismo (faminto de espaço). Assim, os selfies são retratos de investimentos em que o 'eu potencial' deseja Ser estrela, como promete as inúmeras publicidades.

O problema de tudo isso é que é impossível Ser algo no mundo pós-moderno. A sua essência, em termos Baumaniano, é líquida. Nada é fixo. Assim, nunca serão suficientes os auto investimentos. Nunca serão suficientes as fotos no instagram, facebook e afins. Nunca será suficiente a academia dois dias na semana mais o shake. Nunca será suficiente o salário. Nunca será suficiente a casa de praia. Nunca será suficiente o carro do modelo do ano anterior. Sem perceber, nunca será suficiente a vida.

Nessa busca constantemente por Ser algo cada vez mais distante e amorfo (na perspectiva do 'eu receptor’), o 'eu real' arrefece e morre. O 'eu' compartilhado vive sem se viver. Os holofotes iluminam o palco vazio. Não há peça nem história nem Ser. E nem público, pois todos que poderiam assistir a degradação do índivíduo estão sendo protagonistas da própria miséria.